Em 2021, como em 1991, alguma coisa está fora da ordem mundial. Em mundo cibernético, parte da ruína se origina do Vale do Silício, reduto norte-americano de empresas universais de tecnologia que, com o uso de algoritmos, manipulam povos como gados em redes sociais.
É dessa desordem mundial que trata Anjos tronchos, primeiro retumbante single de Meu coco, álbum de músicas inéditas que Caetano Veloso lançará no último trimestre deste ano de 2021.
O poder do verbo do artista consegue sintetizar imagens que revitalizam reflexão sobre tema que, a rigor, já está na ordem do dia. Anjos tronchos versa sobre a desordem de mundo tecnológico em que “palhaços líderes brotam macabros, munidos de controles totais”.
Como em tantas outras composições do artista, caso de Fora da ordem (1991), lançada há 30 anos, a música foi posta em Anjos tronchos a serviço de letra que se impõe sobre os sons sombrios dos sintetizadores de Lucas Nunes – músico que assina a produção musical da faixa juntamente com Caetano Veloso, tendo mixado a gravação com Daniel Carvalho – e os toques econômicos, mas precisos, do baixo e da guitarra de Pedro Sá.
Pedro, cabe lembrar, é músico que integrava a BandaCê, trio indie carioca que deu o tom dos três últimos autorais álbuns de estúdio – Cê (2006), Zii e zie (2009) e Abraçaço (2012) – do cantor e compositor baiano.
Ao longo de quase quatro minutos, alguns poucos acordes se repetem, como mantras, na maioria das estrofes em que Caetano denuncia os horrores de mundo macabro que, a reboque da tecnologia, empodera os tais “palhaços líderes” e mata com “post vil”.
Anjos tronchos é canção que exprime desolamento, sufocada em nuvens tóxicas. “Que é que pode ser salvação? / Que nuvem, se nem espaço há? / Nem tempo, nem sim nem não. Sim: nem não”, reflete o artista desesperançado.
A desesperança remete à lembrança de “tempos em que havia tempos atrás” em verso que serve como deixa para Caetano rememorar luminoso ponto inicial da própria marcha artística com a apresentação, em festival de tempos analógicos, de Alegria alegria (Caetano Veloso, 1967), composição citada através do assertivo verso seguinte – “E eu vou, por que não? Eu vou, por que não? Eu vou” – em que Anjos tronchos se desloca por alguns segundos para a nação musical nordestina, evocada pela marcação da zabumba e do triângulo percutidos pelo carioquíssimo Pretinho da Serrinha.
Entre tanta desordem e desolação, a Arte se aninha na poética de Anjos tronchos, apontada como a salvação, o escape, o bote capaz de resgatar vidas do torpor das redes sociais.
“Mas há poemas como jamais / Ou como algum poeta sonhou”, pondera Caetano, após receitar Arnold Schönberg (1874 – 1951), Anton Webern (1883 – 1945), John Cage (1912 – 1992) – compositores vanguardistas que desafiaram a ordem mundial – e canções para os momentos em que não somos otários.
O verso final de Anjos tronchos – “Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”, alusivo ao modus operandi do single que em 2016 catapultou a cantora e compositora norte-americana Billie Eilish ao estrelato – sopra a esperança de que, como um índio, a arte descerá de estrela colorida, mais avançada do que a mais avançada da tecnologias, para implodir os malefícios do Vale do Silício.
Eis a letra de Anjos tronchos, música inédita gravada por Caetano Veloso para o álbum Meu coco e lançada em single na noite de quinta-feira, 16 de setembro:
Anjos tronchos
(Caetano Veloso)
“Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram: vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis
Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo
E mais e mais e mais e mais e mais.
Primavera Árabe – e logo o horror
Querer que o mundo acabe-se: sombras do amor
Palhaços líderes brotaram macabros
No império e nos seus vastos quintais
Ao que revêm impérios já milenares
Munidos de controles totais.
Anjos já mi ou bi ou trilionários
Comandam só seus mi, bi, trilhões
E nós, quando não somos otários,
Ouvimos Schönberg, Webern, Cage, canções…
Ah, morena bela
Estás aqui
Sem pele, tela a tela
Estamos aí
Um post vil poderá matar
Que é que pode ser salvação?
Que nuvem, se nem espaço há?
Nem tempo, nem sim nem não. Sim: nem não
Mas há poemas como jamais
Ou como algum poeta sonhou
Nos tempos em que havia tempos atrás
E eu vou, por que não? Eu vou, por que não? Eu vou
Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Tocaram fundo o minimíssimo grão
E enquanto nós nos perguntamos do início
Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”
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